O Pequeno príncipe – notas de (uma) tradução – 3

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ATENÇÃO: OS TRÊS ARTIGOS SOBRE A TRADUÇÃO DE O PEQUENO PRÍNCIPE ESTÃO REUNIDOS EM NOVO ENDEREÇO. LEIA A ÍNTEGRA CLICANDO AQUI.

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GÊNEROS E GÊNEROS

Não é novo o assunto “diferença de gêneros nas diversas línguas para designar a mesma coisa”. Sobre ele já li coisas interessantes e também ouvi algumas besteiras. A mais memorável, para mim, saiu de uma professora de latim: segundo ela, arbor (árvore) era feminino porque dava frutos. Então me perguntei por que o francês teria transformado seu descendente arbre em masculino e por que cargas d’água flos, que é a flor, da qual sai o fruto, seria masculino, gênero que o italiano herdou, mas as outras línguas latinas, não, pois a muita gente haveria de parecer insano esse gênero latino. Já houve quem perguntasse de que modo hão de pensar a lua e o sol os alemães que inverteram o gênero dos dois astros. Porque essas coisas sempre acabam recebendo atributos humanos entre os povos que costumam dar gêneros a tudo. E é assim que o sol se casa com a lua ou vice-versa, a flor é mulher bonita, exceto para latinos e italianos, e o mar é amante ou mãe dos franceses.

E o tradutor que se vire.

A palavra mer é uma dor de cabeça, pois, além de feminina, é homófona de mère, mãe. Lamartine, por exemplo, escreveu um poema chamado Adieu à la mer, em que ele “se entrega ao amor” do mar, pede que este “o acalente” como um filho que “te adora”, declara-se à “vaga” (enfim, um feminino em português) que lhe prepara o “líquido berço”, enquanto a “margem” (rivage, masculino em francês!) admira seu seio (do mar), “molemente agitado”. O poema pode ser traduzido, mas as relações entre os entes antropomorfizados mudam inteiramente. Porque essas analogias, que fazem parte de uma tradição secular na poesia francesa, não existem em português. Com isso, a carga afetiva que circunda toda a fala poética não é sequer intuída pelo leitor da tradução. É assim que se criam ou se perdem nexos.

Passo então ao Pequeno Príncipe, neste último artigo sobre sua tradução. Nesse livro, ao contrário do que ocorreria na tradução do poema de Lamartine, a tradução acaba criando nexos que não existem no original.

No caso de minha tradução, a primeira “criação” se dá com a escolha de ovelha em vez de carneiro, tema que desenvolvi em outro artigo. Como bem lembrou Denise Bottmann, em recente comentário, o príncipe se relaciona o tempo todo com seres masculinos. Se bem que — reparo meu — ele tenha vindo de um pequeno planeta, e planeta em francês é feminino. Mas, claro, esse fato é secundário, já que a relação dele com o planeta, pelo menos no que se explicita no texto, não é uma relação humanizada, antropomorfizada. Portanto, partindo da observação de Denise, posso dizer que já logo de cara introduzi um ser feminino onde havia um masculino, numa conversa entre dois seres masculinos (o príncipe e o aviador). Como eu disse, no artigo citado acima, o italiano também fez isso: usou pecora. E, já que estou falando da tradução italiana, também citada no mesmo artigo, em pior situação ficou esse tradutor que foi obrigado a usar o masculino fiore (veja minhas observações acima sobre o gênero dessa palavra). Ora, a flor é o grande amor que o príncipe deixou em seu (sua?) planeta, e a leitura do texto italiano não deixa de modificar o tipo de nexo existente entre príncipe e flor (no caso, como se saberá mais adiante no livro, uma rosa).

Eu, já ciente de que outros percalços viriam pela frente em matéria de gênero, achei que a introdução de uma ovelha onde havia um carneiro (sem chifres ainda) não acarretaria grandes sobressaltos, já que o que o príncipe queria mesmo era um bichinho manso, saudável, novo e sem chifres.

Como também notou Denise Bottmann em seu artigo citado acima, os seres masculinos franceses que se transformam em femininos portugueses são: le boa – a jiboia; le serpent – a serpente; le renard – a raposa; le papillon — a borboleta. Eu não arrolaria jiboia nem borboleta no assunto: a primeira porque não interage com o personagem, está presente só no começo, quando o aviador conta suas memórias de desenhista fracassado; a segunda porque é apenas citada (a rosa quer manter algumas lagartas, para conhecer as borboletas).

Fico só com serpent e renard, o que já está de bom tamanho.

A serpente era um bicho fino como um dedo. Porém mais poderoso que um rei: informação esta dada pelo próprio bicho (mantenhamos o masculino). Um ser masculino dizendo a um garoto que é mais poderoso que um rei conota, para o interlocutor, poderes diferentes dos sugeridos por um ser feminino que fizesse a mesma afirmação. Nas tramas ficcionais, quando há diálogos, é preciso estar atento para o efeito que o personagem A quer produzir sobre o personagem B com qualquer afirmação. E nesse diálogo o personagem serpente diz ao príncipe que é mais poderoso que um rei. O príncipe ainda não conhece os dotes de seu interlocutor.

Acredito que, em relação à serpente, ficam por aí os inconvenientes (se assim se pode chamar) da troca de gênero. De resto, a tradição em língua portuguesa conserva todas as outras características mostradas pelo animal ao longo do texto, de bicho enigmático e sorrateiro, e aí o gênero realmente não causa estranheza.

Estranheza mesmo é causada pela relação com a raposa. Já cheguei a introduzir esse tema quando tratei do verbo apprivoiser no primeiro artigo. Assim que se encontram pela primeira vez, o príncipe diz: quem é você? E em seguida: você é bem bonito. Mantive o masculino de propósito. O príncipe não conhecia o caráter feminino do nome do animal que se apresentaria após essa sua observação. As conotações contidas no diálogo que transcorre a seguir, em português, são totalmente determinadas por dois fatores: o gênero da palavra raposa e a tradução do verbo apprivoiser. Remeto ao artigo em que tratei desse assunto para que se esclareça melhor o que direi aqui. Conforme disse lá, durante boa parte do tempo a raposa usa o verbo em seu sentido de domesticar, sentido que a tradução cativar dilui e enriquece com outros ingredientes. Somado ao fato de termos um ser feminino, o uso de cativar introduz indelevelmente, entre o príncipe e a raposa, um nexo masculino-feminino com nuances amorosas. É bem verdade que o próprio texto francês colabora para aumentar essa impressão quando se dá todo aquele diálogo em que a raposa fala dos trigais que lhe lembrarão os cabelos do príncipe, e da sempre mesma hora em que devem ocorrer os encontros dos dois, para ela começar a ficar feliz já antes etc. Essa diferença no tipo de nexo entre os dois não teria muita importância se esses laços (repetindo palavra do diálogo) não acabassem por assumir um caráter muito semelhante ao que já existia entre o príncipe e sua rosa distante. Essa equiparação é que me parece uma, digamos, injustiça cometida pela tradução em relação ao original.

Mas que fazer para evitar? Transformar a raposa em raposo? Pode ser, mas aí o tradutor, traduzindo, não traduz, porque raposo soa irremediavelmente raro em português, bem diferente da frequência de renard, que só se iguala à de raposa. Raposo só conhecemos com a roupa formal do sobrenome, em sua vida sorrateira e inerte na floresta dos catálogos telefônicos. E até mesmo os seres masculinos que entre nós se notabilizam pela esperteza, pela manha, pelo ardil, são alcunhados no feminino: Fulano é uma raposa.

Publicado por Ivone C Benedetti

Tradutora. Escritora.

3 comentários em “O Pequeno príncipe – notas de (uma) tradução – 3

  1. muito bom! mais difícil do que, não digo “raposo”, mas “raposinho”, que considero plenamente viável, seria o que fazer com a serpente – ofídio seria demais da conta! e um ofídio constritor, já pensou?! alto demais o preço.

  2. não vai sair muito do possível, ivone. como sempre digo, levantar problemas nem sempre significa encontrar soluções…. às vezes, a gente estar ciente dos problemas já basta, não acha?

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